Sonho com o carro da pamonha

Quando abro os olhos lembro que na Itália o milho é só para polenta

the whole beast
4 min readApr 13, 2020
Pamonha do Jerivá para ilustrar o que resta guardado na memória afetiva (foto de divulgação)

Conto oito meses morando na Itália. Sem cuscuzeira. Como cheguei até aqui sem o café-da-manhã herdado da minha ascendência sergipana só não é maior mistério graças ao receituário fomentado pela memória coletiva e a oralidade (pode ser até via YouTube, o suporte não importa neste caso).

Na primeira semana, comprei farinha de polenta. Muito fina para este propósito, mas havia nas gôndolas das bodegas italianas alguns exemplares de moagem mais rústica. O resultado foi pouco satisfatório: o grão finíssimo nega à massa sua fofura costumaz — principalmente para quem sempre comeu a receita das mãos de sergipanas muito prendadas.

Fato é que na Itália, ao menos no varejo, o milho colhido entre o verão e o outono serve estritamente ao propósito da polenta, com algum uso do ingrediente fresco enquanto dura sua sazonalidade. Uma mudança de cidade, ou de país, força mudança de hábitos. E me conformei que não teria mais cuscuz com ovo no café-da-manhã, muito menos uma pamonha de sal à moda pro lanche da tarde.

Eis que o comichão dos pequenos prazeres me assalta de quando em quando. No Brasil conseguia consumir a incrível farinha de milho de São Raimundo Nonato (PI), produzida e comercializada pela família das meninas do Real Sabor, na Feira de Vicente Pires. Por aqui achei o flocão transgênico da Yoki no mercadinho étnico que me fornece coentro fresco e feijão preto. Qual a força de um desejo? Cá está!

Não poderia usá-lo rotineiramente, porque prezo muito pelo bom hábito da alimentação local e sazonal do bom, polido e justo, máxima do Slow Food. Mas aqui o desejo falou mais alto — somado às imagens foodpornográficas do Instagram do meu querido, quase-conterrâneo, chef e professor Marcos Lélis.

A questão era: como fazer o cuscuz sem cuscuzeira. A ausência do instrumento moderno leva ao aprendizado do elementar. Ora, uma cuscuzeira não é mais do que uma panela de cozimento a vapor. De modo empírico improvisei uma gambiarra à base de panelas, amarrações e uma peneira que não deu nada certo. O erro, contudo, foi reparado em forma de farofa.

Diante do fracasso de minha notória falta de prenda para as filigranas da mecânica, recorri à oralidade. Amarrei à tampa da panela um pano de prato finíssimo, pouco mais grosso do que um tecido para queijo, com a massa hidratada e descansada do cuscuz. Água para ferver. Tampo. Espero. Voilà.

Em seguida a oralidade internética fez-se presente mais uma vez na forma do cuscuz de tapioca do Rodrigo Mocotó. Bacana a ideia. Será a próxima experiência. Mas sua receita me fez pensar em fazer justamente isto: cuscuz de frigideira. Faltaria, contudo algum elemento aglutinador. Fácil: ovo (desta vez o zoião que ornaria o cuscuz ao vapor se misturaria cru à massa para garanti-la uniformidade).

Feito. Matada a vontade do cuscuz, mas não a do milho. Ora, o milho corre na veia goiana do meu DNA. Aprendo a viver sem, mas não se pode subestimar a força do desejo. Era minha vida tornando-se uma reprise do Vale a Pena Ver de Novo, modo gastrorromântico.

Diuturnamente, cá no isolamento domiciliar para contenção da pandemia da Covid-19, as viaturas policiais fazem uma ronda. No som do alto-falante repetem em mantra:

"Rispettare le regole
Restare a casa
Rispettare le regole
Restare a casa
Rispettare le regole
Restare a casa"

Nos primeiros dias que ouvi, no meu impulso bairrista-provinciano da Asa Norte brasiliense fiz o oposto: corri para fora de casa. Afinal, sempre fora um gesto automático desde minha adolescência. Não podia ouvir um alto-falante chamando da rua que logo me vinham as ideias fixas (cujos perigos Brás Cubas já nos alertava do além-túmulo).

Na minha antiga quadra aos sábados era o caminhão do abacaxi-pérola-massa-amarela-de-ponte-alegre-de-minas; às terças o amolador-de-facas-conserta-panelas; mas às sextas, ah, as sextas… bastava ignorar o worship de terceira categoria em looping e aguardar outras boas novas: "olha o carro da pamonha; temos pamonha de sal com queijo; pamonha de doce com queijo e pamonha à moda da casa".

Sempre descia correndo para atender ao comichão da pamonha. Um visitante ilustre!

Agora, tão longe, este desejo me tortura em sonho. Adormecendo no sofá ao fim de uma tarde laboral, escuto de longe o eco do alto-falante. As papilas gustativas tsunamam ao redor da língua. Desperto:

— Meu reino por uma pamonha à moda!

Há muito silêncio nesses tempos. Resta o dobrar dos sinos de hora em hora e a passagem errante das viaturas de polícia com seu mantra, que aos poucos deixam o saporífero universo onírico da melodia gospel kitsch a adornar a insinuante frase "olha o carro da pamonha".

Olha o carro da pamonha
Olha o carro da pamonha
Rispettare le regole
Restare a casa

A vida segue desejosa da velha realidade.

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Written by the whole beast

food writing by guilherme lobão (en/pt-br)

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